Grande Cimeira

Mário Lúcio​​​​​​​: "Deve haver uma política pública para o acesso à diversidade"

Patrícia Naves  |  2023-02-07


Cantor, compositor, escritor e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde vai estar em Lisboa para os "Diálogos de Sustentabilidade".

É uma das figuras mais reconhecidas da cultura cabo-verdiana e o escritor mais premiado do seu país a nível internacional. Um dos mais conceituados pensadores da sua geração, Mário Lúcio é também o autor do "Manifesto à crioulização", obra sobre o fenómeno da crioulização no Mundo; e está agora nomeado pelo seu disco "Migrants", para o importante Prémio da Crítica Alemã. A propósito dos "Diálogos de Sustentabilidade", o também ex-ministro da Cultura e Artes de Cabo Verde fala-nos sobre a importância de lançar o tema da intraculturalidade.

Quando falamos de sustentabilidade e cultura, o que é mais premente endereçar?

Ultimamente, os diálogos intraculturais tornaram-se um tema importante - que tenho vindo a estudar -, por causa dos conflitos, tanto a nível religioso, como a nível étnico, mas também em vários aspetos do conhecimento do outro. A dinâmica, a dialética da sociedade - e nós não temos muita literatura, muitas reflexões sobre diálogos intraculturais - mostra que temos um setor retrógrado, outro moderno, um setor de identidades múltiplas, outro conservador e então o conflito já não é de uma cultura em relação a outra desconhecida. É um conflito da cultura como o espaço de empatia, de partilha, de tradições, dos costumes, etc. Hoje em dia, neste momento, os conflitos intraculturais são uma questão séria porque começa a haver rejeição de indivíduos da mesma nacionalidade ou da mesma cidadania, mas que vêm de origens diferentes e por isso não partilham alguns códigos de comunicação cultural - daí vem conflito e é muito difícil de se resolver com os elementos que temos.

Muitas das questões que surgem têm a ver com a falta de conhecimento de outras culturas, de outros patrimónios, de outras maneiras; a ignorância é aliada da intransigência?

Não, hoje em dia diria que não. Já houve o momento em que isso aconteceu, o desconhecimento do outro era fonte de exclusão, de estranheza. Com a Internet, com a circulação, com as migrações, passamos a ter conflitos derivados da desconfiança, derivados de querer a conservação do status, derivados de desconforto, de não saber lidar com os elementos que aparecem de modo imprevisível dentro de uma cultura.

Então como é que se combate esse desconforto? Como é que caminhamos para um maior equilíbrio, sustentabilidade?

Principalmente com diálogos intraculturais. Primeiro, começamos por falar e ter uma reflexão sobre isso. É um tema novo. Lançar esse tema de promover estes diálogos em pé de igualdade, na aceitação do outro e também na aceitação de nós mesmos, porque nós temos um conjunto de valores culturais e às vezes não percebemos que já estamos impregnados de outros valores que vieram de outros lugares, mas estão dentro da nossa cidade, da nossa casa, língua, até que o valor antigo é confrontado com esses valores modernos e a nossa reação imediata é tentar rejeitar esses novos valores. Mas não há como, porque esses valores são também nossos, fazem parte da nossa cultura.

De que forma é que os governos podem ajudar nesta tarefa?

Os governos têm a responsabilidade de definição de políticas públicas. Assim como há políticas públicas na segurança, finanças, também é preciso um grande investimento na cultura para que as pessoas tenham acesso a diferentes tipos de ofertas, sendo que todos temos os nossos gostos mas que há elementos em comum. Essas políticas públicas passam por criação de espaços, apoios a projetos e principalmente a aceitação do que nós chamamos de identidades múltiplas: que um indivíduo hoje pode ter múltiplas nacionalidades, cidadanias, dentro do mesmo território. Portanto, políticas públicas para a culturação, inclusão, aceitação cultural. Hoje, deve haver uma política pública para o acesso à diversidade. E que promova diálogos intraculturais, o máximo possível de diversidade dentro de uma mesma unidade, dentro de uma mesma escola, uma mesma igreja, uma mesma sociedade. E essa função vai acabar por criar a normalidade da aceitação.

Conhece em primeira mão as diferentes culturas e as diferentes maneiras como cada país tem essa abertura ou não a esse diálogo, não é?

Sim, e Cabo Verde é um exemplo. Porquê? Porque mesmo não havendo políticas públicas, sendo ilhas, sendo que havia esses espaços confinados por natureza, havia uma quantidade enorme de etnias, diversas culturas e também etnias que vinham da Europa. E nós aprendemos a viver com isso. Então, Cabo Verde tem algo a partilhar com os outros, porque nós somos produto desses diálogos intraculturais e depois interculturais. A sociedade cabo-verdiana é heterogénea mas essa heterogeneidade criou uma identidade.

DIÁLOGOS

Debate, amanhã, no Teatro da Trindade

Amanhã, dia 9 de fevereiro, decorre o quinto de seis "Diálogos de Sustentabilidade", uma parceria entre o Global Media Group e a Fundação INATEL. Dedicado ao tema "Comunidades Sustentáveis", contará com a presença do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, e Mário Lúcio, compositor, escritor e antigo ministro da Cultura de Cabo Verde. Pode assistir em direto, a partir das 16 horas, nos sites do JN, DN, Dinheiro Vivo e TSF; ou ao vivo, no Teatro da Trindade, em Lisboa (inscrição obrigatória através de jn.pt ou dn.pt).


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